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16 de outubro de 2009

Os brancaleones da modernidade

Taeco Toma Carignato De São Paulo

Decasseguis, trabalhadores brasileiros, agora desempregados em razão da crise Foto: Getty Images

Brancaleone continua muito atual. Que a gripe suína nos confirme. A genial cena em que o atrapalhado cavaleiro medieval, líder de um exército de guerreiros maltrapilhos, sente-se conquistador de uma cidade (da qual sabe sequer o nome) lembra muito as nossas modernas reações. Quando é informado sobre o motivo do esvaziamento da cidade, o fogoso cavaleiro larga a dama que levava nos braços e sai gritando: a peste, a peste. Isso também acontece hoje: ou ignoramos a virulência da gripe e enfrentamos valentemente a multidão contaminada ou recuamos horrorizados frente à impossibilidade de controlar o grande Mal.

Brancaleone e seu exército esfarrapado (brilhantemente focados no cinema por Mário Monicelli) que perambulavam nos tempos medievais marcados pela guerra, peste e fome, também se reatualizam em outras situações dos nossos tempos modernos. Os exércitos brancaleones de hoje são constituídos por trabalhadores migrantes descartáveis, verdadeiras vidas nuas que, na acepção do filósofo italiano, Giorgio Agamben, não servem nem para o sacrifício. Podem ser vistos como homo sacer, essa figura do Direito Romano arcaico que pode ser eliminada sem lhe atribuir qualquer rito sacrificial que lhe permitiria, pelo menos com a morte, o reconhecimento público simbólico. Biologicamente vivos, são despidos de qualquer significado e sentido da existência.

Tomemos como exemplos, os trabalhadores brasileiros nas linhas de produção japonesas, os chamados decasseguis. Submetidos aos braços mecânicos, à inteligência artificial e aos processos desumanizantes de uma lógica de produção avançada, esses trabalhadores buscam no consumo o sentido para a sua existência. Pois "ganhar dinheiro" - a máxima para os imigrantes do final do século XIX e início do século XX - tornou-se, nas sociedades avançadas, tão corriqueiro quanto "gastar dinheiro".

Como "ganhar dinheiro" deixou de fazer-lhes sentido, esses trabalhadores perambulam entre a casa e a fábrica (os que se dedicam à poupança) e entre as fábricas, as lojas de departamentos, as baladas, as boates e as drogas (os que se atiram à gastança). Se Brancaleone e seu exército maltrapilho visavam à conquista de Aurocatro, os trabalhadores brasileiros não buscam a conquista do Japão, nem sequer de uma posição digna na sociedade nipônica. Muitos deles não sabem porque estão lá.

O dinheiro, mesmo realizando trabalhos sujos, pesados e perigosos, tornou-se facilmente acessível nas sociedades da abundância, deixando de ter um sentido próprio. Para os imigrantes que buscam a acumulação, tendo o seu uso postergado, o dinheiro não significa nada a não ser o medo de perdê-lo. Para os que o colocam em circulação por meio do consumo, também não lhes traz sentido, pois pouco tempo fica em suas mãos. O apego aos bens materiais, tal como acontece com Abacuc, o velhinho judeu que acompanha Brancaleone, sobrepõe-se ao seu próprio desapego psíquico e social em um país que os rejeita e quer mandá-los para casa. Como Abacuc, são tomados como bodes expiatórios quando algo vai mal.

Logo, "viver no Japão" também perde sentido e os trabalhadores imigrantes perambulam entre as linhas de produção, de emprego a emprego, até chegar o corte. E o corte chegou, definitivamente para muitos deles. Calcula-se que cerca de 40 mil trabalhadores brasileiros foram descartados do mercado de trabalho japonês. O governo nipônico ofereceu 300 mil iens (cerca de três mil dólares) para que retornem ao Brasil, com a condição de que não voltem ao Japão por um período indefinido. Após o protesto do governo brasileiro, estabeleceu-se em três anos o período de "recesso". Ou seja, uma deportação disfarçada. E um logro, pois o governo japonês investe a metade do valor na compra da passagem e envia a outra metade ao Brasil para que o decassegui a receba em seu país.

Cerca de seis mil brasileiros aceitaram essa oferta, sendo que quatro mil já estão no país.

Nesse retorno, grande parte dos brasileiros chega tão estropiada quanto os guerreiros do Incrível Exército de Brancaleone. Os guerreiros da modernidade não estão vestidos com andrajos, mas apresentam a mente em farrapos. São o exército sem liderança. Ainda bem. Pois se encontrarem um líder, este não vai ser Brancaleone - sempre um herói, mesmo na contramão - mas o fanático Zenone, o condutor dos deserdados e estropriados para a Guerra Santa.

Contudo, alguns dos que dos que retornaram vivem tais como Brancaleone em um limbo, à espera de uma conquista. Não a de Aurocastro ou da Terra Santa, mas a reconquista econômica dos japoneses que os leve de volta ao Japão. Para outros, o corte veio a calhar, pois lhes dá a oportunidade para pensar sobre os próprios destinos. Cientes de que estavam fora de lugar, postergaram a decisão de retorno pelo conforto de estarem trabalhando e por medo de ficar desempregados no país de origem.

Então, o corte impõe-lhes uma impossibilidade. A impossibilidade de retorno, tanto no Brasil como ao Japão. Ou seja, não há retorno em qualquer lugar do mundo. No Brasil, os familiares mudaram, os amigos mudaram, a sociedade mudou, o país mudou. E o próprio emigrante mudou. Os "retornados" têm de construir novas relações familiares e um novo espaço social em seu próprio país. O mesmo vai acontecer se decidir voltar a trabalhar no Japão.

O corte, mesmo caracterizado pela exclusão do mercado trabalho, permite uma reconstituição do sujeito e de seu lugar de cidadão, na medida em que o migrante vai ter de lutar pelo direito ao trabalho, seja no país de retorno, seja no de imigração.

O custo do corte é muito grande. Pois não significa apenas exclusão do mercado de trabalho e expulsão do país de imigração, como também incidências arrasadoras nos processos mentais que resultam em depressões e outros sintomas recorrentes. Isso sem falar na humilhação do desemprego e do retorno.

Contudo, voltamos a insistir, o corte pode ter outras significações. Imposto, já que os decasseguis não conseguem largar o ilusório conforto do poder de consumo, poderá representar uma possibilidade de reflexão sobre os próprios movimentos migratórios e outras trajetórias de vida, permitindo-lhes a reconstituição da subjetividade perdida ou distorcida. Com isso, terão consistência para batalhar pela inserção social em qualquer país que escolherem para viver.

Portanto, no Brasil, nada de permanecer no marasmo esperando que o Japão saia de sua estagnação econômica e novamente lhes ofereça trabalho. O mercado nipônico já não poderá estar disponível, diante do exército de reserva oriental, trabalhadores chineses, filipinos, tailandeses e outros, mais próximos e igualmente ansiosos por uma experiência no exterior.

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