Com 60 anos de carreira, a veterana Marília Pêra atua em sua primeira novela das oito
Gabriela Germano
Marília Pêra é abordada nas ruas por pessoas que acham sua personagem Gioconda, em Duas caras, engraçadíssima. Por mais que na novela de Aguinaldo Silva ela esteja envolvida em uma discussão séria: o preconceito racial. De acordo com a atriz, muita gente se identifica com a madame que ela encarna no folhetim das oito. “As mulheres se aproximam e dizem que são iguais a Gioconda. A personagem sabe que é racista, mas se recrimina. Ela só não imaginava que a filha ia namorar um negro e deixá-la em pânico”, resume Marília, com um sorriso discreto.
ano a atriz está completando 60 anos de carreira. Pisou pela primeira vez nos palcos ao lado de seus pais, que eram atores de teatro, quando tinha quatro anos. Apesar de já ter vivido figuras inesquecíveis na tevê como a Serafina Rosa Petrone, em Uma rosa com amor, de 1972, e Rafaela, de Brega e chique, em 1987, Duas caras é a primeira novela das oito que Marília faz. E ela está feliz com a estréia no horário nobre. “Acho importante a tevê tocar em assuntos sérios como o preconceito. A novela do Aguinaldo faz isso com muita graça. Vejo que ele escreve o meu texto com muito carinho”, acaricia.
Com uma carreira estável e aclamada no teatro, Marília, hoje com 64 anos, é uma das poucas atrizes brasileiras que poderia viver única e exclusivamente dos palcos. Mesmo assim, ao contrário de muitos atores, diz gostar de fazer tevê. “Sobretudo quando o texto é bom. Aí não ligo se tiver de decorar 20 cenas em um dia. É um bom personagem que faz um bom ator na televisão”, acredita.
PERGUNTA - Em Duas caras, sua personagem Gioconda está diretamente envolvida com a discussão do preconceito racial. Como é para você defender uma figura com esse perfil?
MARÍLIA PÊRA - É obrigação da tevê aberta tocar em alguns pontos e ter uma função educativa. E aqui não devemos confundir educativo com chato ou didático. Duas caras levanta algumas discussões sensibilíssimas com muita graça. A minha personagem e também a do Stênio Garcia dizem verdadeiras barbaridades. Em determinado capítulo, a Gioconda falou que se recusava a pensar na possibilidade de sua filha ser namorada do Evilásio e que não queria discutir o assunto porque se dissesse o que pensa, mereceria ser apedrejada na rua e xingada de racista. Ela se recrimina porque sabe que é racista, mas gostaria de não ser. Muita gente se identifica com ela nesse sentido.
P - Você já teve respostas do público em relação à postura de sua personagem?
MP - Algumas pessoas já vieram até mim para dizer que morrem de rir com a Gioconda, porque enxergam nela seus próprios defeitos, suas feridas abertas. Era uma personagem toda correta. Quer dizer, a única incorreção dela era tomar comprimidos. Mas a vida lhe pregou uma peça que ela nunca esperava: sua filha se apaixonou por um rapaz negro. Eu represento, através da Gioconda, milhares de mulheres que são assim. E em relação às pessoas que são as mais atingidas pelo racismo no Brasil, também não tive uma reação negativa. As pessoas sabem que sou uma atriz que estou ali a serviço de um personagem.
P - Este ano você está completando 60 anos de carreira. O fato de Duas caras ser a sua primeira novela das oito não é curioso?
MP - Sim. Fiz muitas novelas das 22h, quando esse horário existia, e também atuei em várias novelas das sete. Mesmo a maneira como fiquei sabendo que faria Duas caras foi curiosa. Vi várias notas em jornais dizendo que o Aguinaldo Silva tinha me visto quatro vezes no teatro, mas não tinha tido coragem de vir me chamar. Depois, quando finalmente conversamos, cheguei a relutar porque achei que havia muitas atrizes com a mesma idade que a minha na novela e poderia ser complicado. Mas ele está dosando a história de cada uma muito bem e estou achando ótimo fazer esse trabalho.
P - Além de atuar na novela das oito, você está dirigindo um espetáculo infantil no Rio de Janeiro e ensaiando outras peças suas que fizeram sucesso no passado e serão remontadas no ano que vem. Trabalhar sem parar é a melhor maneira de comemorar 60 anos de carreira?
MP - Só penso nessa comemoração quando alguém me lembra disso. Mas é muito bom depois de tantos anos trabalhando como atriz ainda ter paixão e desejo de fazer. Esse espetáculo infantil – Um lobo nada mau – montei em três semanas com os meus próprios recursos - resolvi não esperar patrocínio. E trabalho com muita alegria nele. Ao mesmo tempo, ensaio aulas de dança e de canto com o Reinaldo Gianecchini e a Camila Morgado, que farão minha peça Doce deleite em 2008. Tudo isso ao mesmo tempo em que gravo a novela das oito. As pessoas me perguntam: “Você não pára?” Paro em alguns momentos e ouço música, viajo, vou ver musicais, concertos, vou ler. Sou muito versátil nos meus quereres. Mas o trabalho na maioria das vezes também me diverte muito.
P - O estar bem no trabalho não é apenas fazer sucesso?
MP - É melhor quando você faz sucesso e está feliz consigo mesma. Consegue caminhar com todos os problemas do cotidiano e se livrar deles de maneira íntegra.
P - Você é uma atriz que poderia viver exclusivamente de teatro, o que é o sonho de muitos atores. Por que você ainda faz televisão?
MP - Minha formação de berço é o teatro. Eu vi minha família inteira apaixonada pelos palcos, mas muito pobre. Eles tinham dificuldades financeiras, muitas mágoas, ressentimentos. Fui criada dentro de uma família de muito talento, mas frustrada. No tempo deles havia três ou quatro companhias de teatro e nem tinha televisão. Então cresci com o ímpeto de fazer do teatro a minha sobrevivência e vencer nos palcos. Tudo porque vi a paixão de minha família pela produção não ser retribuída. Nunca deixei de fazer uma peça para atuar na tevê. Neste momento tenho um contrato de longo prazo com a Globo, mas eles sabem que daqui a um tempo vamos combinar para que eu possa fazer coisas compatíveis com o teatro. Nunca tinha assinado contrato longo com a Globo. Sempre por obra.
P - Mas você gosta de televisão?
MP - Gosto. Ainda mais quando o texto é bom. O Aguinaldo Silva fala uma coisa que é verdade: “Quem é o melhor ator ou atriz da televisão? Depende do personagem”. Ele tem razão. O autor é Deus e o diretor é um semideus. Se o autor não escreve e o diretor não deixa, o ator não aparece. O ator não tem poderes na televisão. Em Duas caras, estou tendo uma alegria de sentir que o autor escreveu com muito carinho para mim e os diretores também tratam com muito carinho minhas cenas.
P - Quando você viveu a vilã Custódia, em Meu bem querer, ficou descontente com os rumos que a personagem tomou por influência do público e do Ibope. E em relação à Gioconda, você teme o que poderá acontecer com ela em Duas caras?
MP - Na época de Meu bem querer, fiquei preocupada com o fato de a personagem mandar matar duas criancinhas. Achei que não era adequado para uma novela das sete. Mesmo assim não pude impedir que isso acontecesse. Na televisão, o negócio é o Ibope. Você não pode querer exercer o papel de artista em sua plenitude quando está nesse veículo. O papel do artista é estar à frente de seu tempo, surpreender, fazer o que as pessoas ainda não conhecem, abrir novos caminhos. Para isso existe o teatro. Quando sou obrigada a obedecer as opiniões de um grupo de discussão na tevê – o que é bem recente – às vezes fico triste. Mas não brigo com essa realidade porque sei que Ibope e anunciantes mandam. ***
Alta produtividade
Marília Pêra tem muitos planos para 2008. Em setembro do próximo ano, uma nova montagem de O mistério de Irma Vap, interpretada por Marcelo Médici e Cássio Scapin, será apresentada ao público. A atriz dirigiu por 12 anos esse espetáculo com os atores Marco Nanini e Ney Latorraca. “Minha advogada vivia perguntando porque eu não remontava a peça. Sem me contar, ela foi aos Estados Unidos, comprou os direitos e me convidou para dirigir”, conta Marília, feliz com a surpresa. Além disso, ela deve dirigir Fafi Siqueira contando a vida de Dercy Gonçalves nos palcos, apresentar uma peça intitulada Condessa em São Paulo e participar de um espetáculo de Ivaldo Bertazzo sobre o teatro musical brasileiro.
Como todo mortal, no entanto, há um antigo projeto que Marília não acredita mais conseguir concretizar. Ela gostaria de ter um programa na tevê sobre a arte de interpretar. “Poderia ser às três da manhã. Uma escola de arte dramática na televisão. Mas eu teria de mandar em tudo e por isso nunca ninguém vai me deixar fazer isso”, prevê a atriz.
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